Na quarta-feira, fui ao cartório
Os efeitos do abuso sexual intrafamiliar durante a minha infância e puberdade
Passei a quarentena de 2020 em casa com os meus pais. Completei os meus 16 anos no final daquele ano e, se tivesse escolha, estaria passando a maior parte do tempo na casa do meu vizinho por quem eu estaria apaixonada se ele existisse. Então eu não teria que encontrar meu pai toda vez que fosse à cozinha.
Prometi a mim mesma nunca mais falar sobre o meu relacionamento com o pai porque é muito vergonhoso para a nossa família. A minha mãe sempre teve essa pira de “família perfeita”, o que eu internalizei. Acho que, já que ela foi a única dos 5 filhos da minha avó que conseguiu conforto financeiro, deveria manter as aparências. Ela é uma mulher boa, apesar de ser mesquinha uma vez ou outra, eu concordo: a mãe merece uma boa reputação.
Meu pai trabalha desde os 14 anos. Uma vez, eu o entrevistei para uma revista da escola e ele disse que foram seus genitores que mais o inspiraram a chegar onde deu a sorte de chegar, mas a verdade é que a minha avó batia na bunda despida dos filhos com ferro de passar roupa, daqueles antigos e super pesados. E o pai não queria nenhuma bichinha em casa, queria um homem que aguentasse de tudo.
Ao contrário de mim e das minhas irmãs, que conseguimos responsabilizar o pai pelo abuso que sofremos, o pai se responsabilizou, internalizou a negligência e deve ter se olhado no espelho, pensando: é isso o que homens devem fazer.
Hoje, o pai e meu irmão, os machos, são os únicos da família que não fazem terapia. Ele nem acompanhou a mãe na entrevista com a psiquiatra, necessária para o meu diagnóstico de TEA (Transtorno do Espectro Autista). Recusa-se a buscar tratamento para manejar a raiva. Não acha importante acompanhar meu teste neuropsicológico. Seria negativo dizer que ele não se importa porque é claro que sim, eu sou filha dele! Mas ele se afasta e raramente demonstra preocupação. Costuma ser raiva, bufadas, gritos e acusações escrotas.
Nesta Quarta-Feira, agora, dia 25, eu fui ao cartório tirar meu título de eleitora. Aos 20 anos. Atrasadinha, né? Ainda mais depois da eleição de 2018, eu deveria ter tomado vergonha na cara. Consigo ouvir o público vaiando, tudo bem, as eleições são cruciais e definitivas para o futuro de um país. Naquela quarentena, eu poderia ter feito o meu próprio, aos 16 anos.
Eu fui uma adolescente irritada, acho que como a maioria dos adolescentes. Fui politicamente posicionada, de esquerda, debatia com qualquer pessoa; na escola com colegas e professores e em casa com as irmãs, com minhas primas também. Eu nunca tive medo das minhas escolhas políticas. Se eu dissesse algo impreciso, era corrigida por alguém, pesquisava mais a fundo e tentava melhorar o discurso. Nunca fui de direita, nunca fui liberal, conservadora ou reacionária e muito menos tive o tal “passado bolsonarista”. Não sou de cuspir nos direitos humanos porque minha mãe me educou apropriadamente. O problema era o pai em casa, que soltava uma risada bem tranquila da minha determinação e das minhas vontades. Eu pedi para ele me ajudar com o título de eleitora na época. Ele riu. Quis aos 17, se não me engano. Ele sempre dava risada. Aos 18, foda-se. 19 também. Aos 20, ele me manda a mensagem: se tu quer um passaporte, precisa de título. Era pra ter feito há muito tempo atrás.
Como? Se ele só ria? Se na escola, a professora de matemática me ridicularizava quando eu tentava participar? Ela imitava a minha voz e me degradava na frente dos meus coleguinhas. A coordenadora disse para a minha mãe que eu era uma garota de 10 anos preguiçosa, que não sabia acompanhar a turma. Como eu teria tirado a merda desse título se as meninas do ensino médio me chamavam de burra? Todas as vezes que tentei ser alguma coisa além do que diziam sobre mim, seguravam meu cabelo e esfregavam a minha cara em bosta. Então como eu teria a confiança de votar para um prefeito e um presidente se sempre fui burra? Uma mulher adulta e burra não pode tomar decisões confiáveis para o futuro de uma população.
Tenho tanto remorso, ele molha a minha língua com seu sabor amargurado; quando eu dizia o que pensava para o pai, ele ria. Quando falava de problemas psiquiátricos, adivinha? Ele achava muito engraçado ter uma filha adoecida.
Até meus 13 anos, o pai tinha costume de bater na minha bunda, na das minhas irmãs e da minha mãe também. De dentro do meu quarto, já o ouvi descrever minha mãe como uma boneca sexual, para a minha irmã mais velha. Também, aos 10 ou 11, peguei o pai dizendo em voz alta o quanto queria pegar e comer a mãe. Nas viagens de carro, eu o assistia apertar a coxa da mãe até ela dizer “para!” e mesmo assim, ele continuava e perguntava, entredentes: você não gosta? hein? ahn?
Pai, toda vez que você machuca a mãe, você nos machuca também.
Ele foi ausente pela minha infância e tínhamos um bom relacionamento, mas na quarentena, ele passou a viver conosco e, claro, estranhávamos tê-lo por perto. Não gostava de abraçá-lo toda semana, quando ele chegava do trabalho. Quem é esse homem sentado na mesa do almoço? Cadê meu pai mandando beijos lá do Amazonas? O meu pai viaja a trabalho, não fica aqui querendo me apertar e babar na minha bochecha com um beijo demorado!
Lembro de estar fugindo dele – porque nunca gostei desses abraços apertadíssimos –, subindo as escadas de casa, enquanto ele desferia tapas e tapas na minha bunda. Foi tão humilhante. Lembro de gritar para ele parar e lembro de tentar correr, mas ele batia e batia de novo! Nem doía, mas eu chorava de desconforto. Ele achava graça nas minhas lágrimas, dava uma risada assombrosa. Consegui me esconder num armário do escritório e, deveria estar satisfeito com a agonia que me causou, porque seguiu para o próprio quarto como se nada tivesse acontecido.
Os tapas nas nossas bundas continuaram até minha irmã mais velha fazer 18 e se dar conta de que aquilo era nojento. Acho que esse é o lado mais cruel do abuso sexual intrafamiliar. Passamos a enxergar normalidade nele até amadurecermos. No fundamental, quando um repetente batia ou apertava minha bunda, segurava a minha cintura e me fazia sentir sua ereção entre as minhas pernas, mesmo com medo, eu pensava: é isso o que homens devem fazer e, se eu ficar quieta, ele não vai rir de mim.
Se eu for boazinha e quieta o suficiente, talvez, eles me deixem ir; mas não é fácil ser quietinha e boa, é como estar pendurada na borda de uma ponte da qual você já caiu antes; você fica inerte, balançando sutilmente, e mesmo assim, isso exige toda a sua força.
(Vulgo Grace por Margaret Atwood)
Atividades de teor sexual, mesmo que a criança tenha 10 anos, tornam-se parte da rotina assim como o beijo de boa noite e o leite quente com achocolatado antes e depois do sono. É familiar e nós, seres humanos, animais, nos aproximamos apenas do que é familiar. Está claro que fui fadada ao abuso. A minha primeira paixão adolescente já me gritou “Cala a boca! Te deito nessa cama e te arregaço. Encho sua bunda de soco”; a minha segunda ou terceira preenchia a palma da mão com o meu peito sem permissão. Acho que já fui ameaçada de estupro algumas vezes, mas não falo, portanto, não me lembro de quando ou por quem. Tinha muito medo de homens por toda a juventude. Não conseguia falar com eles diretamente ou olhando nos olhos. Não tive esse mesmo problema com mulheres e outros gêneros.
Era tão comum para mim levar tapa na bunda, que eu batia na bunda do meu irmão mais novo e, olhando para trás, é um terror ter reproduzido o comportamento do meu pai. Não sentia desejo, acho que nem imaginava a conotação sexual de um tapa na bunda. Eu só repetia o que me acontecia e achava engraçado quando não era comigo.
Confesso que, sim, eu tenho ressentimentos. Um pouco de inveja também, e daí? Ele vai ganhar um carro antes de mim, ele não é desencorajado dos sonhos que tem, é um rapaz inteligentíssimo. Ah, o homem da casa! Ele até lava a louça, sabe passar pano e vassoura. É parabenizado pelo mínimo, a vó diz: menino prendado!
O pior é que ele não tem culpa nenhuma dessa visão que o pai e a vó tem, então não posso descontar no irmãozinho toda a grandiosidade masculina projetada nele. Inferno. Ele não sofreu ¼ do que eu e as outras sofremos na mão do verme. Tenho inveja. Já desejei ser um rapaz por muito tempo, até pensei que, se eu fosse homem, meu nome seria Bento.
Conversas sobre as nossas bundas e pernas ainda é uma constante mesmo na vida adulta. A mais velha não pode sair de casa com shorts ou saias; se eu estou de moletom e levanto a mão para pegar uma caneca no armário de cima, o pai diz: eu tô vendo sua calcinha; se a mais velha usa shorts de pijama, o pai “Por que tá mostrando a bunda? Mãe, olha sua filha mostrando a bunda. Vai se trocar” e todo aquele lenga-lenga de ter um porco em casa; as meninas não podem ter pele à mostra.
Queria que a minha adolescência tivesse sido diferente, assim, eu passaria mais tempo acreditando no meu potencial como estudante em vez de pensar em como seria estuprada, quando fosse, e teria assistido menos pornografia. Não foi um vício, ainda bem; por muito tempo, não consegui relacionar sexo com prazer e diversão.
Sorte a minha! Apesar de toda a culpa cristã que herdei da minha mãe, não quis me matar depois que transei pela primeira vez. Foi num primeiro encontro com um cara que conheci na festa de aniversário de uma colega do cursinho. Depois da festa, nos encontramos na Praça Roosevelt, onde ele tentou me dedar. Não deixei porque estávamos com as mãos sujas, estávamos na rua afinal; Fomos para a minha casa. Eu já tinha 18 anos e estava no primeiro ano da faculdade, morando sozinha. Ele me deitou na cama e me chupou, mas não senti nada. Só era legal estar fazendo uma coisa nova, uma coisa que adultos fazem. Eu o chupei, não suportei a profundidade e vomitei nhoque ao sugo no pau dele. Limpamos e fiz ele gozar rapidinho depois. Fiquei orgulhosa porque não sabia o que estava fazendo e… achei que ele fosse desanimar depois do vômito. Eu acho que desanimaria totalmente. Desanimei, na verdade. Não fiquei no clima de receber um pau na minha vagina, mas também não era nada especial, no final das contas, como uma primeira vez deveria ser. Para me distanciar da culpa, eu gostava de pensar que era como ser PJ numa empresa grande; o sexo era uma mera indignidade a qual eu deveria passar.
Tire-me toda essa dor
Não deixe-me esperando na chuva!
Devolva todos os anos em que eu sorria ao seu lado
Desquebre o meu coração, diga que me ama de novo…
Desfaça as feridas que me causou quando saiu pela porta da minha vida
Deschore as minhas lágrimas, eu chorei por tantas noites
Desquebre o meu coração, amor
Volte e desfaça as feridas que me causou
Desquebre o meu coração, querido!
Sem você, eu não consigo seguir em frente…
(Un-break my Heart por Toni Braxton)
Sempre ouço essa pensando no pai e sempre me arrepio. Ele tem boas qualidades e é engraçado, apesar de tudo.
Flávia, que texto forte e brutal! Sinto muito que tenha passado por essas experiências. Lendo o seu texto percebi que, apesar de ter crescido com medo de ser abusada sexualmente por outros homens, eu tive o privilégio de ter um pai que me respeita, pelo menos nesse aspecto. Acho que o peso disso só você quem sabe, mas, daqui, já foi muito pesado. E sinto muito também que isso tenha se estendido para a sua vida romântica e sexual, espero que um dia você possa viver experiências melhores com pessoas que te respeitam e se importam com você.
Ps: Vote sim e vote com fogo nos olhos! Nunca é tarde para exercer a nossa cidadania, acho que só de entender a importância disso já diz que você tá muito longe de ser uma "mulher burra". Pois vote!
sinistro dms credo. meu pai fazia e faz até hj essa parada de apertar coxa da mae no carro e outras delicadezas perto de mim e do meu irmao. a gente sempre fica desconfortavel e tenta virar o rosto pra ver se fica menos piorkkk. sempre vem a frase em seguida: "para almir". ai quando toda vez q é tentada alguma critica ou re-educação do comportamento animalesco ele desvia a conversa fazendo alguma "graçinha", invalidando o discurso da mae.
paia dms.